Cheiro de chocolate
Era outono, as folhas já se espalhavam pelo chão só esperando a neve
chegar, antes de acordar eu já sentia o cheiro do maravilhoso chocolate quente
da minha avó, nem me lembrava da escola, levantava pensando em tomar o
chocolate bem quentinho. Eu já sabia o
que iria acontecer, meu primeiro dia de aula no colegial mais parecia uma
visita a uma tribo indígena, a maioria me olhava com ar de curiosidade, como se
eu fosse um ser de outro planeta, os meninos me olhavam como se eu fosse uma
carne suculenta, pareciam hienas famintas, e as meninas simplesmente
ricocheteavam com a cabeça ao encontrarem com o meu olhar. Pensei que com o
tempo isso tudo iria mudar. Enganei-me. Minha dificuldade de relacionamento e
minha timidez fizeram com que esse desajuste permanecesse durante todo o
primeiro semestre.
Somente meu diário sabia da minha
angústia, queria eu poder fazer parte de algum grupo e deixar de ser uma
deslocada, depois de um tempo comecei a me sentir uma joaninha em um formigueiro. Contudo nada é tão ruim que não possa piorar. Certo dia, depois do almoço, sentei
debaixo de uma árvore, comecei a ler meu diário e dormi, quando acordei percebi
que ele já não estava mais comigo. Chorei o resto do dia e fui pra casa
pensando no que poderiam fazer com meu diário e nos motivos para terem tirado
de mim, não queria que as pessoas soubessem da minha vida nem que lessem meus
poemas, e não conseguia parar de chorar, foi horrível.
Todavia as coisas haviam de mudar, no
outro dia, logo que cheguei à escola fui abordada por um menino alto forte,
bonito, as meninas sempre falavam, mas nunca tinha me aproximado menos de 5
metros dele. Ora, nada é tão bom que não possa melhorar. Ele estava segurando a
mochila com o braço flexionado até os ombros mostrando que músculos não lhe
faltavam, e na outra mão meu diário. Disse-me que seu nome era Calvo e que
tinha encontrado aquele diário no banheiro dos meninos, disse também que não
leu muito, somente o suficiente para saber a quem ele pertencia. Logo em
seguida percebeu que eu estava atônita e estendeu o braço para devolver-me o
diário. Peguei-o, agradeci, e sai, mais uma vez minha vergonha falou mais alto.
No dia seguinte não conseguia pensar em
outra coisa a não ser em Calvo, as primeiras aulas antes do intervalo eu nem vi
passar, parecia que eu estava em transe todo esse tempo. Só fui pensar em outra
coisa quando senti o cheiro do lanche do intervalo, estava com muita fome e
precisava repor as energias para poder sonhar um pouco mais com Calvo. Peguei a
merenda e fui sentar em uma mesa isolada como de costume, quase que o arroz
saiu pelo meu nariz quando Calvo apareceu repentinamente perguntando se poderia
sentar-se ao meu lado, só consegui assentir com a cabeça. Foram alguns segundos
estranhos de hesitação até ele começar a falar:
– Queria me desculpar por ter lido seu diário, deveria tê-lo
deixado no achados e perdidos, mas não pude me conter quando percebi a
suavidade e a elegância de sua escrita, sem falar que sua letra é muito bonita
também.
Quando percebeu que eu ainda não havia criado coragem pra
falar, ele continuou:
– Sabe, eu estou no terceiro ano e fui escolhido para ser
orador durante a formatura, talvez você possa me ajudar com o discurso.
– Eu? Ajudar-te? – balbuciei.
– Sim, mas se você não puder, entenderei perfeitamente,
ainda temos seis meses, há tempo de sobra para eu encontrar outra pessoa. – disse displicentemente.
– É que sua forma de escrever era exatamente o que eu estava
procurando, algo despojado, moderno, um pouco mais livre das linguagens
tradicionais. – explicou cautelosamente.
Pensei se tudo aquilo era real. Como um
dos garotos mais bonitos e populares da escola estava pedindo a minha ajuda
para algo? Recobrei a consciência e falei pela primeira vez com o pouco de
franqueza que possuía:
– Eu posso te ajudar sim, sem problemas.
– Muito obrigado ... – hesitou.
– Geovana – Completei.
– Obrigado mesmo Geovana, continuemos mantendo contato. –
Finalizou levantando-se da mesa e saindo.
Senti que meu mundo começara a mudar,
enchi meu diário de adesivos de coração, cupidos e estrelas, ia todos os dias
pra escola cantarolando e assoviando como uma gazela saltitante sem ligar para
risadas alheias. Apesar de minha timidez e insegurança terem aumentado, me
sentia bem comigo mesma, tinha a esperança de poder fazer amizade com Calvo
visto que ele sempre me cumprimentava quando nos encontrávamos, e vinha falar
comigo duas vezes na semana durante o almoço.
E assim se passaram três meses, nesse
tempo Calvo passara a falar comigo todos os dias e inclusive me acompanhou até
em casa algumas vezes. Ele se propôs a me ajudar a ser mais desinibida, segundo
ele eu deveria superar minha timidez para poder me relacionar melhor com as
pessoas. Calvo também achava que eu deveria ser escritora, e chegou até a rir
uma vez de alguma coisa que eu disse, na verdade eu nem queria ser engraçada,
eu estava confusa. Os dias estavam no inverno, mas meu coração estava no verão.
Mas como toda calmaria é precedida de
uma grande tempestade, a primavera viria aflorar uma desgraça sem igual. Resolvi
abrir meus sentimentos para Calvo, disse a ele absolutamente tudo o que sentia,
fui ingênua. Ele me disse que eu tinha me equivocado, que eu havia confundido
algumas coisas e que ele não queria que o nosso relacionamento passasse de amizade.
Disse também que faltavam somente três meses para a formatura e que
possivelmente não nos veríamos mais depois disso, pretendia ir para
outro país.
Eu via meu mundo desmoronar mais uma
vez em cima da minha cabeça, o sentimento de culpa difundido com frustração por
ter me entregado me tomava todas as noites, era difícil parar de chorar. É
claro que em frente a ele nada mudou, acabei descobrindo minha vocação para ser
atriz. Mal tive tempo de pensar em tirar alguma lição disso e já apontava mais
uma onda no meu mar de lágrimas. Calvo já estava rouco a algumas semanas,
pensamos que era algum resfriado ou coisa do tipo, antes fosse, Calvo foi
diagnosticado com um câncer na laringe e segundo os médicos ele perderia a voz
dentro de 2 meses. Obviamente essa doença o derrubou profundamente em
depressão, dificilmente ele conseguiria fazer a oratória da formatura.
Encontrei-me em uma situação de total
desamparo, queria ajudar Calvo mas naquele momento eu não poderia fazer nada.
Ainda me sentia receosa em demonstrar qualquer afeto por ele. Calvo estava tão
focado na formatura, estava quase decorando o discurso por completo e,
subitamente, tudo fora interrompido. Depois de algumas semanas, Calvo voltou a
frequentar as aulas, pude conversar com ele e, dessa vez, ficamos mais próximos
do que nunca.
Misteriosamente as pessoas começaram a
se afastar de Calvo, porém eu sempre o confortava e o deixava feliz contando
histórias do meu diário. Não pensávamos nos motivos torpes pelos quais as
pessoas se afastaram, estávamos muito unidos e parecia que nossa amizade
preenchia qualquer buraco formado pela doença. Eu me sentia confortável com
aquela situação, não era bem o que eu queria mas estar perto dele me fazia bem
e isso era o que importava pra mim.
Fazia algum tempo que Calvo tentava me
desinibir, insistia ele que eu tinha potencial e queria me ajudar a superar
minha timidez, dizia que uma hora ou outra eu precisaria me impor à sociedade. Porém
eram somente conselhos e previsões, ainda não tinha estado em uma situação em
que ficar calada não fosse uma opção. E foi pensando assim que tomei mais um
baque quando Calvo, astutamente, escreveu em um papel:
-Conversei com o Diretor e ele concordou em tornar você a
oradora da formatura esse ano. Possivelmente não poderei falar com perfeição,
mas estarei ao seu lado. Você está pronta.
– Mas... eu não... –sem sucesso, tentei formar uma frase.
Já estava sentindo as conversas
paralelas que permeavam o silêncio da multidão aguardando minhas palavras durante
a o discurso da formatura. Tentando me acalmar, Calvo prosseguiu escrevendo:
-Ninguém conhece as falas melhor do que você, faltam poucos
dias para a formatura e não há tempo para procurar outra pessoa, e mesmo se achássemos
alguém, não teria tempo para decorar o discurso. O diretor não quer um aluno
lendo e sim discursando.
Comecei a perceber que não teria saída.
Teria que lutar contra minha timidez, Calvo contava comigo e eu não queria
decepciona-lo.
–Tudo bem Calvo, farei o possível.
Ele me abraçou fortemente e por três
segundos me senti dentro de um mundo completamente novo. Seu cheiro era doce e
amadeirado e seus braços me envolviam de forma a limitar meus movimentos e sua
respiração me fez perceber que não era só o frio que podia me arrepiar. Naquele
momento já não pensava mais em formatura alguma, já não pensava mais em nada.
Os dias que se seguiram foram repletos
de sentimentos que não poderiam ser catalogados nem mesmo por mim. Minha
relação com Calvo estava mais próxima do que nunca, portanto estava feliz por
isso. Porém essa proximidade com Calvo se traduziria em um final em que eu
teria que me comunicar com mais pessoas em um dia do que eu falara a vida toda.
Por mais que Calvo tentasse me ajudar de todas as formas possíveis, sentia que
para que tudo saísse bem eu teria que mudar minha forma de pensar minha forma
de ser e isso não seria nada fácil.
Minha relação com Calvo ficou tão
próxima a ponto de passarmos o dia todo juntos conversando e dando risada,
percebia que seria muito mais fácil se na minha frente estivessem sentado mil
Calvos. Com ele eu era a pessoa que eu sempre quis ser.
Dois dias antes da formatura Calvo
estava completamente sem voz, mas nem precisava falar nada nos entendíamos somente
com olhares, e foi no último dia da primavera que tudo aconteceu. Estávamos em
uma praça alimentando os pombos e observando o movimento e mágico foi o momento
em que nossos olhares se cruzaram e ali estacionaram. Não pude contar os segundos,
pra mim pareceu uma eternidade, Calvo colocou sua mão em meu rosto, senti o
calor de seus dedos entre meu pescoço e minha orelha, não sabia se tudo aquilo
era real ou se eu iria acordar com o cheiro do chocolate quente da minha avó
mais uma vez. Fomos nos aproximando cada vez mais e nos encostamos pelo nariz,
curioso pensar que a parte mais gelada do rosto serviria de entrada para o
sentimento mais quente que meu corpo já sentira, e então aconteceu. O tempo que
durou foi exatamente o necessário para que fosse perfeito, senti que estava
prepara para qualquer desafio. Tudo acabou com um sorriso recíproco e então ali
ficamos o resto da tarde.
No dia seguinte viu-se o primeiro sol
do verão, de repente Portland parecia o lugar mais bonito do mundo, no fundo eu
entendi que tudo era reflexo do meu estado de espírito. Ajudei nos preparativos
da festa sempre ao lado de Calvo, já sem voz e sem cabelo devido aos processos
quimioterápicos. A meu ver ele ficava mais charmoso sem cabelo, felizmente a
maioria das meninas não achava o mesmo. O dia passou rápido, foi tudo muito
corrido mas deu tudo certo, estava tudo preparado.
Acordei bem antes do cheiro de chocolate
exaurir pela casa surpreendendo a minha avó, comi o mais rápido que pude e
corri para a escola, precisava encontrar Calvo e dar uma última revisada no
texto. Procurei por toda a escola e não o encontrei, imaginei que ele estivesse
muito ocupado se preparando para o evento. Então percebi que os pais de Calvo
estavam conversando com o diretor, esperei eles terminarem e abordei-os perguntando onde poderia encontrar Calvo. Tristes e cabisbaixos eles responderam:
– Calvo sofreu uma
crise essa madrugada e precisou ser internado às pressas. Infelizmente ele não
participará da formatura.
– Meus sentimentos – conclui roboticamente.
Os pais de Calvo agradeceram e saíram.
Eu sentei pra não cair, não acreditava no que estava acontecendo. Como eu iria
fazer o discurso sem ele pra me apoiar, me senti impotente. Fui visita-lo no
hospital, precisava vê-lo. Chegando lá não pude conter minhas lágrimas e
chorei, ele sorrindo me perguntou:
– Por que está chorando?
– Você vai perder a formatura, não conseguirei sem você –
respondi aos prantos.
– Ei! Prometa-me uma coisa – falou com autoridade, porém bem
baixo e falhado.
– Prometa que vai voltar lá, fazer o discurso para todos e
mostrar para eles quem é você. Isso não é importante só pra mim, é sua chance
de mostrar para você mesma que é capaz. E depois disso tudo, prometa que você
virá aqui fazer o discurso pra mim, posso perder a formatura, mas me recuso a
perder você. – Falou com toda força que lhe restara no peito e dormiu.
A enfermeira disse que era efeito do
sedativo. Não me tranquilizou nem um pouco. Não consegui fazer nada além de
chorar ainda mais, prometi e sai correndo. Agindo totalmente por impulso
cheguei em cima da hora, subi no púlpito ofegante e comecei a falar. Foram minutos
de tensão sobre os quais passei pensando somente em Calvo, não via a hora de
sair correndo daí para ir ter com ele. Quando terminei, me vi chorando novamente
junto a boa parte dos que assistiam, desci as escadas sobre aplausos e corri para
o hospital. Naquele momento fazia tudo impulsionada pela vontade de vê-lo bem,
lembro-me de pouquíssimas coisas, o calor do momento tomara minhas atitudes.
Chegando ao hospital encontrei Calvo ainda
dormindo, sentei-me ao seu lado e esperei que acordasse. Horas depois ele
acordou devagar e me olhou dizendo:
–Agora você pode terminar de cumprir sua promessa.
E então discursei para ele e vi o
sorriso em seu rosto. Não chorava mais, estava muito feliz por tudo e só queria
descansar. Ele me puxou para perto e deitou minha cabeça em seu peito, eu
fechei os olhos e disse para que ele evitar falar. Como sempre ele não me deu
ouvidos e disse:
– Quero ficar com você, não vou mais sair do país, tudo que
eu quero eu já encontrei sem nem começar a procurar. Eu te amo.
Depois de ouvir aquilo lágrimas
saltavam do meu olho, mas minha face não esboçava reação, eu não precisava
dizer nada, ele já sabia de tudo. Naquele momento senti mais uma vez o cheiro
do chocolate da minha avó, aquele mesmo cheiro que me acordava todas as manhãs
estava me despertando para uma nova vida, uma vida eterna ao lado do meu amor.
Por Isaac Botossi Fonseca